Irmãos, irmãs, desta Igreja de Deus em Niterói!
Durante a maior parte da história, os enclaves onde viviam os humanos permaneceram muito pequenos, cercados por extensões de natureza selvagem. As colônias eram compostas de 100 a 150 habitantes cada uma, e nada mais havia ao redor, a não ser florestas, pedras, rios e animais. A superfície do planeta mede cerca de 510 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 155 milhões são terra, e o restante, oceanos. No ano de 1400 DC, a grande maioria dos agricultores, junto com as plantas e os animais que haviam sido colonizados pelo homem, se reunia numa área de apenas 11 milhões de quilômetros quadrados, ou seja, 2% da superfície da Terra. Todos os outros lugares ou eram frios demais, quentes demais, secos demais, úmidos demais ou, de qualquer outra forma, inadequados para o cultivo e a vida. Esses minúsculos 2% da superfície do planeta constituíam o palco no qual a história havia se desenvolvido, até então.
Acontece que a espécie humana cresceu sem o mundo sair do lugar nem mudar de tamanho. Assim sendo, depois da sobrevivência, a maior dificuldade para a espécie humana foi a vizinhança. Viver foi uma conquista voluntária. Conviver foi uma conquista imposta. Viver não foi tão difícil quanto conviver. A história registrou momentos em que as guerras mataram mais que a fome, a peste, as doenças e as catástrofes naturais, juntas. Se não tivéssemos desenvolvido dispositivos como a família, a cultura e a religião, o ser humano já teria desaparecido da face da Terra. Ele mesmo seria seu destruidor.
O primeiro desses dispositivos, que nos manteve até hoje, foi a família. Contudo, junto com outros seres vivos, plantas e animais, parece ser ela, justamente, o que o homem, nesse momento coloca em risco de extinção. A família nos manteve até aqui. Destruí-la é o começo do fim, é colocar o pé fora da história, é entregar de volta o planeta para ser colonizado por baratas e escorpiões.
Decerto não é o que queremos. Com certeza, não é o desejo da Igreja.
A exortação Apostólica pós-sinodal AMORIS LAETITIA – A ALEGRIA DO AMOR, do Papa Francisco, vem acrescentar um tom de alegria à urgência do momento. Diz o Papa: “A Alegria do Amor que se vive nas famílias é também o júbilo da Igreja. Apesar dos numerosos sinais de crise no matrimônio – como foi observado pelos Padres sinodais – o desejo de família permanece vivo, especialmente entre os jovens, e isto incentiva a Igreja. Como resposta a este anseio, o anúncio cristão sobre a família é verdadeiramente uma boa notícia”.
E como poderia não ser?
A grande novidade, que já não deveria, mas que, constantemente, precisa ser retomada e relembrada, é que a boa notícia do Evangelho não está restrita a esta ou àquela comunidade de fiéis que pensam e agem como donos da verdade do Cristo. A verdade do Cristo Jesus – caminho, verdade e vida – tem alcance universal.
Ainda mais!
Se pensássemos como o Padre Teilhard de Chardin, diríamos que a verdade do Cristo tem alcance cósmico. Diríamos que em cada átomo do universo subsistem vivas as sementes do Verbo, espalhadas pelo Pai na longa sementeira, que já dura bem 13,5 bilhões de anos. Uma boa conta! Se pensarmos que há apenas 200 mil anos surgiu o homo sapiens na África Oriental, somos levados a concluir que foi quase ontem. Por algum desígnio escondido, a ele foi dado cuidar do jardim. Por alguma razão ainda velada, é ele quem mais o destrói.
Foi por isso, que “o caminho sinodal permitiu analisar a situação das famílias no mundo atual, alargar a nossa perspectiva e reavivar a nossa consciência sobre a importância do matrimônio e da família. A complexidade dos temas tratados mostrou-nos a necessidade de continuar a aprofundar, com liberdade, algumas questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais. A reflexão dos pastores e teólogos, se for fiel à Igreja, honesta, realista e criativa, ajudar-nos-á a alcançar uma maior clareza. Os debates, que têm lugar nos meios de comunicação ou em publicações, e mesmo entre ministros da Igreja, estendem-se desde o desejo desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação, até a atitude que pretende resolver tudo através da aplicação de normas gerais, ou deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas”.
É preciso cuidar da sementeira, se quisermos bons frutos. A família é a sementeira.
Tendo conversado com professores da rede pública, constato, com tristeza, o quanto a falência da família se reflete no fracasso escolar. Tendo contatado pessoas de outros setores da sociedade, constato que, se as instituições e os motores da sociedade se encontram em crise, quando não em franco processo de falência, é na célula familiar que se processa o triste diagnóstico de necrose e apoptose, e é ali mesmo que é possível dispor de qualquer possibilidade de renascimento e de cura. A apoptose é a morte programada de uma célula. Se a morte pode ser programada, por que também não a vida?
Programemos a vida da família.
AMORIS LAETITIA é um documento delicioso de ser lido. Tem-se a impressão de estar conversando com o Papa Francisco, naquela linguagem franca e aberta característica dele, que tanto tem comovido e motivado o mundo a encontrar novos caminhos, onde os antigos foram destruídos. Ainda agora, vendo o Papa carregar consigo algumas famílias de refugiados, não há como a gente não pensar que se ele pudesse levaria o mundo inteiro para morar consigo.
A Igreja também é assim.
Saída dos quartos escuros de janelas fechadas, ela abre suas portas e aconchega nos braços de mãe, quase avó, todos os filhos, todos, todos. Os que ela mesma gerou e os que foram gerados longe dela. Os que ela viu crescer e os que cresceram em outros lugares, por tantas variáveis que só a dispersão humana consegue abarcar, mesmo sem compreender.
A Trindade é família. A Igreja é família. Cada um de nós é pai, mãe, filho, irmão.
O Papa termina a Exortação, dizendo ser “uma experiência espiritual profunda contemplar cada ente querido com os olhos de Deus e reconhecer Cristo nele. Isto exige uma disponibilidade gratuita, que permita apreciar a sua dignidade. (…) Jesus era um modelo, porque, quando alguém se aproximava para falar com Ele, fixava nele o seu olhar, olhava com amor (Mc 10, 21). Ninguém se sentia transcurado na sua presença, pois as suas palavras e gestos eram expressão desta pergunta: Que queres que te faça? (Mc 10, 51). Vive-se isto na vida quotidiana da família. Nela, recordamos que a pessoa que vive conosco merece tudo e tem uma dignidade infinita, por ser objeto do amor imenso do Pai”.
Parecem ser estas as palavras que precisamos ouvir para lidar com o presente e o futuro. Não precisamos de nenhuma visão apocalíptica sobre o futuro: guerras e destruição já se encontram no presente. Precisamos, sim, acreditar e confiar que não estamos sozinhos. Que nenhuma nuvem negra de desconsolação poderá alterar a claridade do nosso dia. Que trazemos muito mais a vida do que a morte.
Confiamos. Por isso rezamos, com o Papa.
Jesus, Maria e José, em Vós contemplamos o esplendor do verdadeiro amor; confiantes, a Vós nos consagramos. Sagrada Família de Nazaré, tornai também as nossas famílias lugares de comunhão e cenáculos de oração, autênticas escolas do Evangelho e pequenas igrejas domésticas. Sagrada Família de Nazaré, que nunca mais haja nas famílias episódios de violência, de fechamento e divisão; e quem tiver sido ferido ou escandalizado, seja rapidamente consolado e curado. Sagrada Família de Nazaré, fazei com que todos nos tornemos conscientes do caráter sagrado e inviolável da família, da sua beleza no projeto de Deus. Jesus, Maria e José, ouvi-nos e acolhei a nossa súplica. Amém.
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói