No dia 25 de maio, a Arquidiocese de Niterói teve a alegria de celebrar os 40 anos de Ordenação Episcopal do nosso Arcebispo Emérito Dom Alano Maria Pena, OP. Partilho com os leitores a homilia que fiz nessa ocasião solene:
Querido Dom Alano, irmão, amigo e colaborador na missão de pastorear. Celebrando Nossa Senhora Auxiliadora, co-padroeira da Arquidiocese e nossa intercessora com São João Batista, celebramos seus 40 anos de Ordenação Episcopal.
Cada passo desses 40 anos, Dom Alano, pertence a Deus. Mas, esses numerosos dias foram vividos para o serviço do Evangelho e na dedicação ao povo de Deus. Por isso, aqui estamos reunidos para louvar, para agradecer, para adorar e para fazer festa.
O ambiente do evangelho de hoje é uma festa de casamento. Núpcias! O símbolo da Aliança, tão reprisado em Oseias, Jeremias e no maravilhoso Cântico dos Cânticos. Em toda Primeira Aliança o encontro do homem com Deus sempre foi descrito como uma festa de casamento. Um dia Deus seria tudo em todos, e todos viveriam com Ele em eterna lua-de-mel. Esse foi o sonho que alimentou os profetas, e antes deles, os patriarcas. Esse também foi o sonho de que se alimentou a vida e o ministério de Jesus.
Para Jesus, o Reino dos Céus se assemelha a uma festa de Bodas, as bodas entre Deus e os homens, uma lua-de-mel sem fim entre um Deus apaixonado pelo homem e um homem apaixonado por seu Deus.
Mas para o evangelista João, há algo de estranho naquelas núpcias. Aquelas núpcias são anônimas! Onde está a noiva? O noivo é o último personagem a aparecer. Ninguém sabe de nada! Nem o mordomo, nem os noivos. Apenas os servos. Sim! Pois eles sempre sabem! Naquelas núpcias de Caná, só os servos sabiam!
Irmãos, irmãs, João está nos mostrando, aqui, um sinal. O primeiro dos sinais. No final da narrativa, será dito que “ele manifestou a sua glória e os seus discípulos acreditaram nele” (11). Se é o primeiro dos sinais, a pergunta que não quer calar é: Que sinal é esse? Que sinal é esse que as núpcias nos mostram? Ou nos escondem?
O que começamos a saber é que Jesus realiza seu primeiro e grandioso sinal em Caná da Galileia, nas montanhas, longe da oficialidade da Judéia. Mas João não tem intenções políticas. Não é de revolução política que ele fala. A revolução verdadeira é aquela que acontece no mais profundo, a partir de uma ordem interior. Só a transformação do lado de dentro empurra e alavanca para as transformações externas. Qualquer transformação que não venha de dentro do homem, apenas muda as coisas de lugar. Não queremos mudanças, queremos transformações. Caná não é o lugar das mudanças e sim das transformações.
Houve núpcias em Caná da Galileia! Tudo começa no amor. E o primeiro jeito do amor é a cara da mãe.
“E a Mãe de Jesus estava lá”. Numa única frase se encontra toda diferença. “E a Mãe de Jesus estava lá”. Apenas isso: “Mãe”, sem nome nem sobrenome.
Qual o sentido dessa “Mãe” que aparece em João? Trata-se da Mãe do Israel antigo, do qual vai nascer a novidade do Evangelho.
E a Mãe diz: “Eles não têm vinho!” É como num campeonato de futebol, alguém dizer: “Esqueceram a bola!” Faltou o vinho. Faltou o essencial da festa. E é a Mãe de Jesus que lhe informa o trágico: Eles não têm vinho! Ou seja, eles não têm, nunca tiveram, se um dia beberam de qualquer coisa a que chamaram vinho, estavam enganados, mas aquilo que eles bebiam não era vinho. Era ruim, de baixa qualidade, de uvas amargas.
A Mãe é profundamente realista. Naquele dia, ela já era Auxiliadora. Auxiliadora e realista. Auxiliadora, porém realista. Conhecedora da extensão e da profundidade da condição humana, porque ela mesma portadora dessa condição, sem véus, sem coroas, o que encontramos aqui, precisamente aqui, é uma Mãe de um realismo contundente. Eles não têm vinho! O que eles andam bebendo por aí não é vinho. Dá-nos o teu vinho, é o que pede a Mãe ao Filho.
Observem, irmãos e irmãs, como é feita a informação que a Mãe repassa ao Filho: Eles não têm vinho! Ela não diz: Nós não temos vinho! Ela diz: Eles não têm vinho! Ela já não faz parte da antiga liturgia com que se adorava Deus, à distância. São eles que não têm vinho. É quase como se ela dissesse: Eles não têm vinho. Chegou a hora de dar do nosso vinho a eles!
Ela já está em outra. Ela não faz parte mais dos rituais antigos, onde a Essência de Deus era distribuída a contas gotas, com limites, com economias. Mas ela também não faz parte desses rituais modernos, onde a Essência de Deus foi industrializada e deixada pronta para o consumo imediato. A Mãe, a realista Mãe, a Mãe Auxiliadora e conhecedora das indigências humanas quer um vinho novo, o vinho do Filho. Porque ele é a Videira verdadeira (15,1).
E como a Mãe já está em outra, ela não se dirige ao mordomo, encarregado de suprir o vinho e a alegria da festa. O mordomo da festa pertence à situação, é feito da matéria do sistema, e dele, nada, nada se pode esperar. Ele sequer conhece a problemática da indigência humana: não sabia que não havia vinho nem sabia de onde veio o vinho novo (9-10).
Pelo contrário, depois de falar com Jesus, ela se dirige aos servos. A Mãe Auxiliadora, conhecedora da indigência humana se dirige a quem mais conhece essa indigência por vivê-la na pele. Ela se dirige aos servos e a ordem é clara: “Façam tudo o que ele disser”.
Descobrimos que “Estavam ali colocadas seis talhas de pedra destinadas à purificação dos judeus, cabendo de duas a três medidas cada”. É como se, de repente, se interrompesse a narrativa, e toda a atenção fosse concentrada nas talhas. Elas são apresentadas com detalhes: são em número de 6, mostrando um número imperfeito, são de pedra, destinadas à purificação, comportam uns 100 litros, são pesadas.
Mas o mais importante, o que realmente nos interessa, hoje, é o que não é dito. As talhas tinham enorme potencial, mas estavam vazias! É a ordem de Jesus que nos faz pensar assim: “Encham de água essas talhas”. Não bastava o potencial que elas tinham. Elas precisavam conter água. Não basta o nosso potencial, se estivermos vazios.
“E os servos as encheram até à boca”. Façam com que elas adquiram a razão para a qual foram feitas. Vamos dar sentido ao que perdeu o sentido, ou ao que nunca teve sentido algum.
“Então Jesus lhes mandou: Retirem a água e levem ao mordomo. E os servos levaram”. Tirem e levem. Tirar e levar são os verbos fundamentais do momento e do movimento. Tirar e levar indica um movimento de passagem (9b). Jesus não exorciza a água, não impõe mãos, não ritualiza, não acena com nenhum passe mágico. Apenas ordena isso: “tirem e levem”. A água se transforma em vinho nesse movimento. Nessa passagem. Passagem é páscoa: 13,1. A água das bodas de Caná é água que passa. É água pascal. A água se transforma em vinho no movimento de passagem! O vinho novo é vinho pascal!
É só quando você sai de si mesmo, que sua água se transforma em vinho. Quanto mais você permanecer em talhas velhas, embora sejam de grande potencial, mais água parada e morta você ficará! Não tenha medo de sair, de passar, de ser conduzido. E o evangelho mostra que foi na mão dos que menos contam, foi na mão dos empregados que o milagre aconteceu.
Somos águas pascais. E o nosso destino não é continuar água. Nosso destino é nos deixar ser transformados em vinho bom. Nosso destino é a páscoa. Nosso destino é reviver vinhos bons, na plenitude da festa pascal.
Irmãos e irmãs, Caná só existiu porque a Mãe ergueu sua palavra Auxiliadora, palavra forte e poderosa, e nada pediu, apenas insinuou ao Filho. Eles não têm vinho! Foi preciso que uma voz de Mãe, uma voz Auxiliadora, chegasse aos ouvidos do Filho. Peçamos, hoje, que a Mãe Auxiliadora, atenta, discreta, silenciosa e operante, quando faltar o nosso vinho, também levante sua voz aos ouvidos do Filho para lhe dizer: Vê? Eles não têm vinho! E que, nesse dia, nós mesmos nos transformemos no vinho bom que faltou em Caná.
Querido Dom Alano, 40 anos de episcopado!
E quantos anos de ordenação sacerdotal? 53? E o Sr. se lembra de quando saiu, a primeira vez, das talhas tranquilas de sua residência, e se embrenhou pelo campo aberto da Messe, para ir atrás do Senhor da Plantação, nos passos de São Domingos? Quantos anos o Sr. tinha Dom Alano?
Somando tudo, quantos anos temos? Mais de 60 anos dedicados ao Senhor e 40 anos como Bispo. Todos esses anos, saindo das talhas de pedra, levado pelas mãos da Providência, encaminhado na direção da festa das núpcias do Reino!
Naturalmente, o Sr. não foi sozinho. Naturalmente, ninguém vai sozinho. Conduzido apenas pela própria natureza, ninguém chega a lugar nenhum. No seguimento de Jesus, conduzido pela trilha de São Domingos, desde a Ordenação Presbiteral em 1961, e sua Ordenação Episcopal em 1975, quantas águas se tornaram vinho!
“QUE TODOS SEJAM UM” não foi apenas lema de seu brasão, mas lema de vida em Belém, Marabá, Itapeva, Nova Friburgo, Niterói… Por quantos lugares essas águas pascais tiveram de passar para se constituírem no vinho bom que hoje misturamos ao vinho da Ceia da Bênção para oferecer em atitude de gratidão, louvor e adoração a Deus!
Quantos fizeram por suas mãos a mesma travessia pelas águas do Batismo, da Confirmação, da Ordenação Diaconal, Presbiteral e Episcopal! Sobre quantos suas mãos se ergueram para abençoar, perdoar, ligar, unir, conduzir pela última jornada! Por isso,D.Alano, sua festa é a nossa festa, a festa da Igreja Arquidiocesana de Niterói. Sua festa é a festa de toda Igreja! Sua festa nos enche de coragem e nos dá a certeza de estarmos no caminho certo.
O Sr., Dom Alano, é vinho bom! É água humana transformada em vinho novo da Graça. Se já era bom quando era água, tornado vinho, ficou ainda melhor. Quando nos deixamos transformar em vinho, então, o bom Deus nos transporta, ele mesmo, de nossas talhas de pedra, nos transforma em vinho.
Cem vezes abençoada seja a água que o viu nascer para Deus! Mil vezes abençoado seja o vinho em que o Sr. se tornou!
Parabéns, querido Dom Alano! Muito obrigado pelo seu exemplo de vida, fidelidade e amor a Jesus e à sua Igreja! Amém.
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói
Lindo texto. Primoroso. Rico em detalhes, capaz de criar imagens de reflexão. O li, como que ouvindo a voz de Dom José Francisco.
Como a meu pai, lembro de Dom José Francisco todos os dias. Minha gratidão por tudo que fez por mim.
Grande abraço!