Um coração maior que o mundo

Eu não consigo falar no Sagrado Coração sem me lembrar do mês de junho da minha infância, e de toda beleza que havia, e de toda pompa com que era celebrado o Coração que tanto amou os homens. A devoção ao Coração de Jesus é uma das expressões mais difundidas da piedade eclesial. É uma devoção que alcança a todos, simples e eruditos, na medida de sua compreensão e na medida do seu amor ao Amor.

O início dessa devoção, na era moderna, foram as aparições a Santa Margarida Maria. A partir do século XVII, este culto teve um incremento notável e adquiriu a sua feição hoje conhecida. Nenhuma outra manifestação divina, a não ser, claro, a palavra da Sagrada Escritura, recebeu tantos estímulos da parte do Magistério da Igreja. Entre os documentos, encontra-se a encíclica de Pio XII, Haurietis aquas, de 15 de Maio de 1956. A encíclica salienta que é o próprio Jesus quem toma a iniciativa de nos apresentar o Seu Coração como fonte de restauração e de paz: “Vinde a mim, todos vós, que estais cansados e oprimidos, que Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para todo vosso ser. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve”. (Mt 11, 28-30)

Não é por acaso que o incremento dessa devoção deu-se num momento crucial, século XVII, quando se pretendia, justamente, afirmar a secularização. A devoção ao Sagrado Coração surgiu como a mais característica de todas as iniciativas que resistiram à descristianização da sociedade moderna.

58 anos se passaram desde o dia em que nasci. 58 anos se passaram desde a encíclica. Faço sempre questão de analisar os desenvolvimentos da Fé dentro dos progressos do mundo. Nesse tempo quanta coisa aconteceu! O homem pisou na Lua, quase detonou uma terceira guerra mundial, quase a AIDS representou uma ameaça letal para a espécie, quase pusemos, várias vezes, o temível ponto final na aventura humana. E o Sagrado Coração se mantém inalterável.

O papa Pio XII havia escrito essa encíclica para celebrar e recordar a todos o primeiro centenário da extensão a toda a Igreja da festa do Sagrado Coração de Jesus. Foi o modo do papa se ligar ao fio ininterrupto de uma devoção que há séculos acompanha e conforta os cristãos em seu caminho. Mas a primeira coisa que chama a atenção na encíclica é a orientação bíblica de todo o texto, desde o título, que é uma citação do livro do Profeta Isaías (12,3).

No passado, essa devoção se desenvolveu entre o povo, sobretudo, a partir das chamadas “revelações” de tipo particular. Foi a encíclica Haurietis aquas que nos deu a percepção de como nessa devoção tradicional estava sintetizada concretamente a mensagem bíblica do amor de Deus, soberano sobre todos os amores que passam.

Muitos de nós tivemos o caminho cristão pessoal formatado desde a infância com essa devoção. Nossas mães e catequistas nos infundiram a prática das primeiras nove sextas-feiras do mês. Nesse dia, eu me levantava cedo para ir à missa e comungar. A promessa era de que quem se confessasse e comungasse seguidamente nas nove primeiras sextas-feiras do mês (e não era permitido pular nenhuma!) podia estar certo de obter a graça da perseverança final. Essa era a promessa mais importante de todas.

Essa devoção, naquela época, ainda estava concentrada, sobretudo, no louvor e na entrega ao Coração de Jesus, quase separado do resto do corpo do Senhor. Algumas imagens reproduziam, de fato, apenas o Coração, coroado de espinhos, atravessado pela lança.

Um dos maiores méritos da encíclica Haurietis aquas foi justamente pôr todos esses elementos em seu contexto bíblico e dar relevo ao significado profundo dessa devoção: o amor de Deus, que desde a eternidade ama tanto o mundo que deu o seu Filho por ele (Jo 3,16; Rm 8,32). Depois da encíclica, o culto do Coração de Jesus cresceu e se tornou na Igreja uma devoção pelo íntimo da pessoa de Cristo, por sua consciência profunda, sua escolha de dedicação total ao Pai e a nós. O coração, em linguagem bíblica, é justamente o centro da pessoa e o lugar das suas decisões.

A devoção alcançou o grande mérito de chamar a atenção para a centralidade de Cristo, o Amado de Deus, a chave da história do mundo e da história da salvação. A centralidade de Cristo é a centralidade do amor de Deus, a centralidade do amor como porta de entrada no mundo e único meio de viver aqui. Mas, para perceber isso, era necessário aprender a ler as Escrituras como uma carta do amor de Deus pela humanidade. A encíclica de Pio XII marcou um momento decisivo desse caminho.

O outro mérito da encíclica consistiu em sublinhar a humanidade de Jesus.

Retomando as reflexões dos Padres da Igreja sobre o mistério da Encarnação, insistindo no fato de que o Coração de Jesus “devia sem dúvida pulsar de amor e de qualquer outro afeto sensível”, a encíclica ajudou a nos defender de um falso misticismo que tenderia a deixar de lado a humanidade de Cristo para nos aproximar de maneira quase direta do mistério inefável de Deus. Os grandes santos, Santa Teresa d’Ávila, Santo Inácio de Loyola, afirmaram que a humanidade de Jesus continua a ser a passagem obrigatória para compreender o mistério de Deus. Não se trata portanto de venerar apenas o Coração de Jesus como símbolo concreto do amor de Deus por nós, mas nele, no seu Coração, contemplar a plenitude cósmica de Cristo: “Ele é antes de tudo e tudo nele subsiste (…), pois nele aprouve a Deus fazer habitar nele toda a plenitude” (Cl 1,17.19).

Para amar o mundo como o mundo é, para ser capaz de amá-lo apesar daquilo que ele é, é preciso um coração que seja do mundo e, ao mesmo tempo, diferente do mundo e, ao mesmo tempo, maior que o mundo.

O Coração de Cristo é assim: inteiramente do mundo, completamente diferente do mundo e muito maior do que o mundo. Exatamente assim. Um coração maior que o mundo.

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  1. Vejo no coração do nosso Arcebispo Dom José Francisco em sua caminhada pela Arquidiocese uma doação de sabedoria e humildade. Essa doação nos incentiva em nossa missão e nos faz olhar com mais atenção o coração humilde e manso de Jesus. \”Um coração maior que o mundo\” Dom J. Francisco Rezende

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