Na casa de meu pai todos têm pão, e eu, aqui, morrendo de fome.
(Lucas 15,17)
CARTA PASTORAL PARA O ANO DE 2016
ANO SANTO DA MISERICÓRDIA
Queridos irmãos e irmãs, no Santo Batismo, na Vida Consagrada e no Sacerdócio;
Irmãos e irmãs, unidos na mesma fé no único Senhor e Salvador Jesus Cristo;
Irmãos e irmãs, da mesma casa comum e humana, que habitam sob o mesmo teto das estrelas, que desejam e trabalham pela paz entre todos;
“Que a graça e a paz de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo, estejam com todos vocês” (Fl 1,2).
Para começar
Esta Carta Pastoral não busca nenhum aparato de doutrina ou nenhuma referência de autoridade. Ela quer ser uma meditação sobre a misericórdia, em dias quando o amor se vende, exposto na grande mídia. Ela quer ser apenas uma carta entre irmãos, que depois vão se encontrar e conversar. Irmãos que se veem sempre, para quem os bilhetes são suficientes. Irmãos que quase nunca se encontram, para quem as cartas têm o cheiro da casa paterna e dos sabores que visitavam a cozinha. Irmãos que nunca mais se encontraram ou porque as distâncias os separaram ou porque o coração não quis mais se encontrar. Somos todos irmãos. Irmãos na mesma mesa do mesmo pão no Cristo Jesus, irmãos na mesma fé em um Deus que se chama Amor, irmãos na mesma humanidade que tem produzido muitas histórias belas, e outras, nem tanto assim.
A história é cheia de histórias. Uma delas, improvável, nem por isso menos verdadeira, é a de que encontraram escrito a estilete nas paredes de madeira do campo de extermínio de Auschwitz a seguinte frase: “Se fosse possível entender, não seria preciso perdoar”.
Essa frase deve chamar nossa atenção nesse Ano Santo da Misericórdia. Perguntemo-nos: onde estaria a misericórdia, na compreensão ou no perdão?
Sabemos que no perdão. Mas, não seria igualmente ou ainda mais certeira a frase de Auschwitz? André Malraux dizia que julgar é evidentemente não compreender, pois, se compreendêssemos, já não poderíamos mais julgar. Já não poderíamos nem odiar. E é isso que a misericórdia pede, é tudo o que ela propõe.
Quando se compreende já não há o que perdoar. O conhecimento e o amor tornam o perdão a um só tempo necessário, porém, supérfluo. Necessário, porque, na verdade, é o perdão que realiza essa ideia; sem ele, ela seria apenas uma abstração. Mas supérfluo, porque, na verdade, a eficiência do perdão se agacha pequena diante da eficácia do amor.
Não desejamos mal à chuva que inunda ou ao raio que fulmina e, por conseguinte, nada temos a lhes perdoar. Talvez fosse esse o verdadeiro “milagre” da misericórdia: o perdão se abole no mesmo instante em que se dá, o ódio se dissolve na verdade. É por isso que a misericórdia de Deus é infinita, porque ela é própria verdade. Deus não precisa perdoar, ele simplesmente não julga. Ele compreende e ama.
Daí que o perdão seja o ponto de vista de Deus no coração do homem. É o que aprendemos na bela e conhecida parábola do Filho pródigo.
Vamos pedir ajuda ao filho pródigo. “Na casa de meu pai todos têm pão, e eu, aqui, morrendo de fome”. Mais especificamente ao pai do filho pródigo. Ele sim é, sem dúvida, o homem da compreensão. Perdoou, sim, quem há de duvidar? Mas o que o levou ao perdão foi o amor e a compreensão. Perdoou porque amou. Amou porque compreendeu. A misericórdia precisa dos dois como a água precisa do hidrogênio e do oxigênio para existir. Se a misericórdia for a água, a compreensão será o hidrogênio e o amor, o oxigênio. A misericórdia lava, dessedenta, vivifica.
Daí que a misericórdia seja o ponto de vista de Deus no coração do homem.
Perdoar é cessar de odiar. Consequentemente, é também cessar de precisar perdoar. Quando o perdão for completo, nada mais restará além da verdade e do amor. Não haverá mais ódio a cessar. O próprio perdão irá se abolir na misericórdia. Como a seca na água.
Até porque, pensando bem, perdoar tem custo alto. Compreender sai muito mais barato.
“Na casa de meu pai todos têm pão, e eu, aqui, morrendo de fome”.
O Ano Santo é o da Misericórdia.
Poderia ser o da compreensão, do perdão, da abertura de espírito, da capacidade de sair de si e encontrar o outro. Daria na mesma, porque a misericórdia engloba tudo isso. Como água mansa e boa, que refresca e faz viver. Como o pão de que o filho tinha fome, e ninguém lhe dava.
O Pai do Filho pródigo
A parábola se chama do “Filho Pródigo”. Mas ela é muito mais do pai que do filho. Poderia ser também a parábola do “irmão mais velho do filho pródigo”. Seja por onde for vista e abordada, nada supera a figura do pai. É em torno dela que a parábola gira. Aliás, é assim que a parábola começa: “Um homem tinha dois filhos”. Um homem. Por que não um pai? Porque ser homem era sua constituição natural. Ele era, e pronto. Ser pai foi o que vida esperou dele. Ele podia não ter sido. Mas foi. E no relato, a palavra “Pai” é repetida mais de dez vezes.
Essa parábola de Jesus é a mais clara resposta para o mais antigo mistério: quem é Deus? Como Deus é?
Ele não é um pai que guarda para si a sua herança, obcecado com a moralidade de seus filhos. Ele é um pai que corre. Corre na direção do filho que esteve longe, corre na direção do filho que esteve perto. Ele é um pai que corre ao encontro sem exigências. Ele se comove, se esquece de sua dignidade, se esquece até do que nunca esqueceu: de que seu filho, ao pedir a herança, o havia considerado como morto. Não pede explicações, não impõe castigo, não exige rituais de purificação. Nunca julgou, por isso, sequer precisa manifestar perdão. Não é necessário. Nunca deixou de amar o filho.
Esse é o mistério de Deus: Deus é um pai que corre ao encontro para se dar a quem não quer. O amor é dar tudo o que se tem até a quem não quer. O pai repartiu com o filho mais novo a “vida”. Esse é o mistério de Deus: ele não faz conta de si, ele reparte sua própria vida. Esse mistério é tão grande e claro que nos ofusca completamente.
Essa parábola de Jesus também é uma resposta para outro antigo mistério: quem é o homem? O que é o homem?
“Na casa de meu pai todos têm pão, e eu, aqui, morrendo de fome”.
A pós-modernidade nasceu com a proclamação de Nietzsche de que Deus havia morrido. Enfim, o homem estava liberto de todas as amarras, liberto para ser o que bem quisesse. Nenhuma religião, nenhuma instituição, nenhum grande outro. Nada. A não ser o nada. Declarada a morte de tudo, o homem estava livre para se refestelar no seu nada.
Não foi isso que o filho mais novo fez? Declarou a morte do pai, exigiu a parte da herança, e foi gozar o esbanjamento da existência num país distante. E sem ninguém para turvar seu horizonte livre, refestelou-se até onde o dinheiro do pai pudesse comprar. E terminou, enfim, no nada. Entre porcos. Desejoso de comer uma lavagem, que nem isso lhe davam. As coisas não são novas, a história é cíclica: sempre se repete.
Não deixa de ser interessante e cruel a menção do “país distante” para onde o filho se evadiu. A palavra distante é uma referência. Distante de onde? Distante do quê? Distante do país do pai, essa é a primeira resposta que nos virá sempre. Mas não seria de outra distância que o texto nos fala? Não seria distante de si mesmo?
O país distante é o país do esquecimento.
O filho mais novo perdido num país distante é a metáfora mais congruente dessa sociedade, tão nova em seus acertos e tão velha em seus desacertos. Tão adolescente em sua busca de felicidades, que se perde esquecida da maior herança adquirida a preço de suor, registrada com sangue. E a maior herança é a herança da memória.
O país distante é o país do esquecimento.
Entre as patologias da pós-modernidade, a mais cruel, decerto, é o Alzheimer-social. Tudo se esquece fácil, porque o país distante é o país do esquecimento fácil. Hoje, o homem está mais para um ser esquecido, no sentido de que, esquecido do caminho, ele se vê condenado a não chegar a lugar nenhum.
“Na casa de meu pai todos têm pão, e eu, aqui, morrendo de fome”.
Mas, e o filho mais velho, a que mistério ele responde? Ele não foi para nenhum país distante, pelo contrário, ficou ali mesmo, na casa do pai. Ou será que para ele o país distante estava ali, na casa do pai, dentro das paredes onde cresceu, no quintal onde compôs os primeiros desenhos na terra molhada da chuva? Muitas vezes, o distante é o mais próximo. Muitas vezes, o distante é aqui.
A tragédia do filho mais velho foi que apesar de nunca ter abandonado a casa do pai, seu coração nunca esteve ali, sempre esteve longe. Ele soube cumprir todos os mandamentos, mas nunca aprendeu a amar. Ele também é perdido, desencontrado, amargurado, invejoso. O filho mais novo reencontrou o caminho que havia perdido. Como fazer com o filho mais velho, se ele também se perdeu, só que dentro do próprio caminho! O mistério a que o filho mais velho responde é o mistério da extensão do amor. O pai é aquele que sabe que amar é dar tudo o que se tem até a quem não o quer. O filho mais velho parece ser aquele que não sabe querer, ou pelo menos aquele que não sabe que já quer.
Curiosamente, Jesus conclui a parábola sem nenhuma conclusão. O filho mais velho entrou na festa ou ficou de fora? Não sabemos. Para todos sempre há de existir um país distante. Qualquer lugar longe do Pai sempre será um país distante, distante da fonte do amor e de qualquer outra que possa ser considerada a fonte de si mesmo.
Não há como não enxergar um pequeno paralelo entre Jesus e o filho mais novo da parábola, na relação com o pai e o filho mais velho. A vida é feita de relações, as coisas estão sempre em relação. Jesus também se afastou da casa paterna, também foi para países distantes, também correu riscos, também enfrentou a hostilidade dos irmãos mais velhos da família, da sociedade, da religião. Ele só não dilapidou nenhuma herança, nenhuma vida. Ao contrário! Assim como o Pai, ele veio para distribuir a vida. Sua herança é sua vida. Ele a distribuiu aos jorros, num amor que sabe que amar será sempre dar do que se tem até a quem não o quer.
O mundo em busca de um pai
Algumas tradições de psicologia giram em torno da figura da mãe. São aqueles enfoques que privilegiam os primeiros estágios do desenvolvimento, sobretudo, a origem da capacidade do homem se relacionar em um mundo feito de relações.
Outras tradições, mais tardias, também evocam tardiamente a figura do pai. Ela seria a organizadora de tudo o que foi construído desde os primeiros momentos do pequeno ser. Sem a figura paterna, toda organização deteriora por excesso de ensimesmamento ou de narcisismo, como preferirem.
Na verdade, como quase em tudo, as tradições não se excluem, mas se completam. O mundo precisa de uma mãe. O mundo anda em busca de um pai. A mãe é sempre real, estava lá desde sempre e para sempre. O pai, não, o pai é simbólico, precisa ser nomeado e reconhecido. A mãe diz à criança: Vai com seu pai. O tabelião confirma o auto de reconhecimento quando apõe o sobrenome do pai como aquele que encerra e conclui a história do pequeno ser. Ele foi sempre filho de uma mãe. Doravante ele será para sempre filho de um pai.
O mundo está em busca de um pai. Quem mostrará o caminho de volta?
Povos em guerras, terrorismos cegos, políticas corrompidas, religiões de coração endurecido, países extremamente ricos, povos mergulhados na doença e na fome… Essa é a tragédia do Pai: querer e não conseguir, ainda, ver os filhos sentados à mesma mesa, compartilhando amistosamente de um banquete festivo, acima dos ódios e das condenações. Essa é a tragédia do Pai. O mundo foi sempre o seu sonho. Como é difícil despertar o mundo de seu próprio pesadelo!
E, no entanto, o mundo continua em busca de um pai. Onde estará o caminho de volta?
O Papa Francisco e toda Igreja quiseram que este ano fosse um ano de misericórdia. Talvez, mais que um Ano da Misericórdia, quem sabe, não seria melhor vivido, como um ano de misericórdia.
“Na casa de meu pai todos têm pão, e eu, aqui, morrendo de fome”.
Quanto ainda se ouve essa queixa de todos os que se afastaram ou que foram afastados pelas contingências da vida! Se na casa do Pai há pão, e em abundância, não podemos suportar, não conseguiremos suportar, que um só filho padeça fome em terras distantes. É preciso criar uma revolução no pensamento e na ação, algo que comporte o amor aos que se perderam nas terras distantes do esquecimento e do abandono. Sobretudo, algo que abra as comportas das nossas barragens para que o amor flua e alcance os que já não acreditam mais nele.
A parábola do pai bom significa uma verdadeira revolução em tudo quanto se tenha ouvido, desde os primeiros que a ouviram aos últimos que ainda não a ouviram, ou não a ouviram desde o coração. Então os perdidos serão acolhidos? Sim, serão. Então é isso o Reino de Deus, um lugar para todos? Sim, é isso. Então é esse o Deus de que sempre ouvimos falar, mas como juiz de um tribunal sem piedade? Sim, é esse, exatamente assim, puro amor que não se contém, porque a marca do amor é não se conter.
Essa é a parábola de um Pai que gosta e acha bom tudo o que fez, porque se não gostasse não teria feito. Um Pai que olha os filhos com amor incondicionado e procura conduzir a história para uma festa final onde se celebre a vida, a misericórdia e a libertação de tudo o que escraviza, degrada e limita a experiência humana. Um Pai que já mandou preparar a veste, já confeccionou ele próprio o anel do filho, já preparou o banquete para todos, com música e dança e em um esbanjamento de ternura. Na verdade, pensando bem, o filho mais novo da parábola puxou ao pai: o primeiro esbanjou a vida dos outros, o segundo esbanjou a própria vida, no mar calmo da ternura.
Que incrível história humana nos aguarda! Quanta expectativa o Pai nutre por nós! Como pode ser marcado pela beleza aquilo que hoje ainda chamamos de desordem! Como ainda pode ser traduzido pela verdade aquilo que hoje ainda é veiculado como trapaça! Como sempre poderá ser convertido em alegria toda desesperança do mundo!
Essa é a esperança do Pai.
Para terminar
Tudo converge para o Amor. Tudo desagua na misericórdia.
Não desperdicem a misericórdia do Senhor.
Vivemos num tempo que nada pode ser desperdiçado: nem água nem comida nem tempo. Então, não desperdicem a misericórdia do Senhor.
Os tempos não são fáceis. De todos os lados a morte ergue seu poder contra a fragilidade humana. Desde as determinações internacionais, ao que corre em nosso país, ao que anda nos cômodos da nossa casa, ao que vive nas nossas salas internas. A morte não dá tréguas. Mas ela não tem poder algum contra a liberdade do amor e da misericórdia. Tudo o que não é dado, é perdido. A morte entende a força do perder, mas nunca conseguiu o poder do dar. Isso é nosso, isso é humano, é mais que humano, é divino.
Aos homens e mulheres a quem chegarem essas palavras peço que ergam suas preces a Deus – rico em misericórdia -, na esperança de construir um mundo melhor.
Aos irmãos e irmãs que dobram seus joelhos diante do Senhor e Cristo Jesus e comungam do mesmo pão de sua palavra e de sua mesa, peço que ergam seus corações em prece, pelo mundo dos que não creem sequer que o mundo possa ser melhor.
A todos, peço, rezemos sempre à suave Rainha, Mãe de Misericórdia, Mãe de todas as misericórdias que fluem da abundância do Amor que é seu Filho, bendito para sempre, e que é o próprio Amor, bendito para sempre!
Salve Rainha,
Mãe de misericórdia!
Vida. Doçura.
E esperança nossa.
Salve!
A todos deixo aqui meu carinho e minha bênção de pai, pastor e amigo.
+ José Francisco Rezende Dias
Arcebispo de Niterói