“Laudato si’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu Senhor”, cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recordava-nos que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços: “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras” (1).
Com essas palavras, o Papa Francisco inaugura sua Carta Encíclica LAUDATO SI’– sobre o cuidado da casa comum. Alegremo-nos e festejemos, irmãos e irmãs, porque mais uma vez, na longa história da Igreja, o Senhor da Vida nos fala de forma clara e audível em um de seus representantes. Louvado sejas, meu Senhor!
Em 1973, quando entrei para o seminário, ia completar-se o 10º ano da abertura do Concílio Vaticano II, considerado o maior dos concílios, o maior em número de participantes, o único cujo tema maior foi a preocupação com as relações entre a Igreja e o Mundo, sobretudo, nas angústias que emergiam do mundo moderno, imerso no desespero da falta de sentido, na frustração com as promessas das conquistas científicas, no desastre da fome, no terror da iminência de uma nova guerra total. Aqueles eram os tempos de guerra fria.
Um dia antes do encerramento do Concílio, foi aprovado a Constituição Pastoral Gaudium et Spes – literalmente, alegria e esperança – sobre a Igreja no mundo de hoje. Esse documento havia sido elaborado e reelaborado ao longo dos 2 anos de Concílio, em suas grandes 4 sessões e, por fim, a Igreja estava dando ao mundo sua maior contribuição daquele conturbado século XX, talvez, uma das maiores até hoje dadas.
Qual contribuição? Uma compreensão do mundo que nem ele mesmo foi capaz de alcançar a respeito de si mesmo, em toda longa história de civilização marcada por guerras e ódio sem fim. Uma contribuição em que a palavra “esperança” só podia ser precedida pela palavra “alegria”. Deus tinha visto que tudo era bom (Gn 1). Pois bem, havia chegado, enfim, a hora da Igreja reconhecer essa bondade do mundo, criado pelo amor do Criador, ele próprio repleto de esperança.
Minha alegria e esperança se duplicaram com a publicação da Carta Encíclica LAUDATO SI’ do Papa Francisco. Ele retoma o contexto do Concílio Vaticano II como se esses 50 anos não houvessem passado. “Nada deste mundo nos é indiferente. Mais de cinquenta anos atrás, quando o mundo estava oscilando sobre o fio duma crise nuclear, o Santo Papa João XXIII escreveu uma encíclica na qual não se limitava a rejeitar a guerra, mas quis transmitir uma proposta de paz. Dirigiu a sua mensagem Pacem in terris a todo o mundo católico, mas acrescentava: e a todas as pessoas de boa vontade. Agora, à vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta” (3).
E o Papa continua: “Oito anos depois da Pacem in terris, em 1971, o Beato Papa Paulo VI referiu-se à problemática ecológica, apresentando-a como uma crise que é consequência dramática da atividade descontrolada do ser humano: Por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, o ser humano começa a correr o risco de a destruir e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação. E, dirigindo-se à FAO, falou da possibilidade duma catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial, sublinhando a necessidade urgente duma mudança radical no comportamento da humanidade, porque os progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, o desenvolvimento econômico mais prodigioso, se não estiverem unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente contra o homem” (4).
Na Gaudium et Spes, os padres conciliares disseram que o Concílio Vaticano II, tendo investigado o mistério da Igreja não hesitava em dirigir sua palavra não apenas aos filhos da Igreja, mas a todos os homens. E que o Concílio tinha diante dos olhos o mundo dos homens, toda inteira família humana, com todas as realidades. E que era visível a angústia por que passava a humanidade diante de todas as descobertas, pois que, depois delas e apesar delas, a humanidade escorregava para um futuro sombrio. “Trata-se com efeito de salvar a pessoa humana e restaurar a sociedade humana. Por isso o homem será o fulcro de toda a nossa exposição: o homem uno e integral: corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade” (GS 3). O Papa Francisco religa o fio da História, recarrega a energia, produz luz. Abençoada seja essa luz!
Nossa leitura da encíclica pretende resgatar a imensidão de um texto que lança raízes na profundidade sagrada do Texto Bíblico, no Cântico das Criaturas, e em toda vivência e posicionamento da Igreja, ao longo de sua Tradição, sobretudo, no último século. “Uma ecologia integral possui essa perspectiva ampla” (159). É de amplitude que nos fala o Papa, do homem uno e integral, e não de regras práticas nem de receitas prontas para questões que, ao mesmo tempo, nos ameaçam e nos informam de nossa grandeza. Para que viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos? Qual o nosso propósito?
As palavras do Papa dizem respeito ao presente e ao futuro da humanidade. Haverá um mundo depois do homem? Ou, ao contrário, haverá homem depois do mundo? “Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer?” (160). É essa a grande questão do momento, a questão central da Encíclica. Os meios de comunicação irão naturalmente salientar os conselhos do Papa sobre o meio ambiente e coisas afins. Não há tempo nem espaço para a mídia ser profunda; ela é vítima e refém daquilo que ela mesma, às vezes, se esforça em denunciar. Não é só isso o que nossa leitura irá nos mostrar.
Quero, de todo coração, desejar uma boa leitura a todos. Trata-se de uma leitura espiritual. É com a alma que se deve compreender a alma. Emprestemos a nossa alma para compreender a alma do mundo. Afinal, será que o mundo não teria uma alma? Latu sensu, não poderíamos dizer que o próprio Espírito de Deus é a alma do mundo? Desejo profundamente que nossa alma esteja aberta para compreender a alma do mundo.
Quero, por fim, e não menos de todo coração, louvar a Deus que deu o dom do Papa Francisco à Igreja e o dom da Igreja a nós. Laudato si’! Louvado sejas, meu Senhor! “Todo o meu ser se rejubila, Senhor, com as obras de tuas mãos!” (Sl 92,5).
+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói