A VOZ DO PASTOR – O perfume de Maria, irmã de Lázaro

Eis que faço novas todas as coisas (Ap 21,5).

Seis dias antes da Páscoa, Jesus foi para Betânia, onde estava Lázaro, que ele havia ressuscitado dos mortos (Jo 12,1).

Tem início uma nova série de dias. No evangelho de João, tudo que antes era apenas “sinal”, a partir de agora torna-se “realidade”.

A Páscoa começa em Betânia, simplesmente Betânia, sem qualquer precisão geográfica. Betânia, é o lugar da comunidade: é lá que todos nos encontramos vivos, levantados dos mortos.

E aí ofereceram um jantar para Jesus. Marta servia e Lázaro estava reclinado à mesa com Jesus (Jo 12,2). Lázaro está reclinado, numa relação de intimidade exclusiva com Jesus. Jesus estava reclinado junto ao peito do Pai (Jo 1,18). O discípulo amado esteve reclinado ao peito de Jesus (Jo 13,23). Essa é a nova situação de Lázaro: de íntimo da morte, ele se tornou íntimo da vida.

E, ali, ofereceram uma ceia a Jesus. Aquela ceia antecede a Ceia do lava-pés, a Ceia da Páscoa, a Ceia da Passagem. Tanto, que os detalhes do desenrolar desta ceia lembram e preparam a próxima: ação de graças, unção e lavagem dos pés, Lázaro e o Discípulo Amado igualmente reclinados, a presença de Judas. Tudo muito parecido, tudo muito igual.

Então Maria levou uma libra de bálsamo de nardo puro, muito caro, ungiu com ele os pés de Jesus e os enxugou com seus cabelos, e a casa inteira se encheu com o perfume do bálsamo (Jo 12,3).

Por favor, não deixem de perceber o requinte da narrativa! É a linguagem do Amor. A linguagem do Cântico dos Cânticos (1,12). Como já disse, o gesto antecipa o lava-pés, e o lava-pés, para João, é o máximo que Jesus terá a dizer a respeito do amor. Mais do que isso, só a linguagem da Cruz, quando não haverá outro jeito e Terão de olhar para Aquele que transpassaram (Jo 19,37).

Não percam a riqueza de contrastes.

Jeremias havia profetizado: Já que vocês não ouviram as minhas palavras … eu vou condenar todos ao extermínio, vou fazer de todos um objeto de horror, de vaia e de vergonha permanente. Eliminarei do seu meio o som da música, os gritos de alegria, a voz do noivo e da noiva, o barulho do moinho e a luz da lâmpada (Jr 25, 8-10). Em Jesus, agora, havia voltado de novo a alegria, alegria que havia faltado em Caná (Jo 2,1-12), alegria que encheu o Batista (Jo 3,29), o contraste exato com o mau cheiro da morte que aterrorizava Marta (11,39). Aquele mau cheiro se transformou em perfume. São as grandes transformações. É sempre de novo a água virando vinho.

Mas ergue-se uma voz dissonante. Por que sempre haverá vozes dissonantes às mudanças?

Judas Iscariotes, um dos discípulos, aquele que o ia trair, disse: Por que não se vendeu esse perfume por trezentos denários, e não seu deu aos pobres? Judas disse isso não porque se preocupasse com os pobres, mas porque era um ladrão, tendo a bolsa comum, roubava do que era depositado nela (Jo 12,4-6).

Judas é o homem da vingança, do ódio, da morte. Ele decaiu na alma, no propósito, no ideal. Lázaro caminhou da morte para a vida. Judas faz o caminho contrário.

É que o pretexto de Judas privilegia o lado de fora da comunidade e não o interior. Como Judas não participa dos valores do grupo, quer dissimular sua falta de integração apelando para uma atividade que na verdade é só evasão. Por que não se deu aos pobres? Fala como se fosse possível amar os de fora sem amar os de dentro. Como se o amor não fosse a própria identidade da comunidade e a sua plataforma (Jo 15,12-17). A comunidade cristã nunca pretendeu ser uma comunidade de reforma do mundo, mas de reforma de si mesma. O que Judas pensa é que ninguém, nem o próprio Jesus, merece amor total. Na verdade, é ele que não está disposto a dar o que quer que seja a quem quer que seja. Então, se refugia no genérico, na massa abstrata, nos pobres.

O versículo 6 é a mentira de Judas. Na realidade, para ele, os pobres pouco importam. O que pretende é tirar vantagens pessoais. Ele não opõe Jesus aos pobres, mas aos seus próprios interesses. O amor demonstrado ali, na quebra do bálsamo, o incomoda porque além de não ser o seu modo de conduzir as coisas, impede seu proveito pessoal. Judas não rompeu com o sistema opressor. Na hora final, ele será o aliado das trevas (Jo 13,30). Por não ter recebido a vida, como Lázaro, não tem nada a celebrar e a festa lhe parece inoportuna. Judas não tem alegria. Ele encarna o mundo, que se opõe a Jesus.

O valor, 300 denários, equivalia a quase um ano de trabalho. Judas continua nas categorias do dinheiro, tal como os vendedores do Templo (Jo 2,14). Para ele, tudo se resume em comprar e vender. Ele não digeriu a “multiplicação dos pães” (Jo 6), o doar, o partilhar. Judas prefere o dinheiro ao amor. E o amor estava ali, no perfume do bálsamo que encheu a casa toda. Maria quebra o frasco, desvaloriza o dinheiro. Judas desvaloriza o amor.

Curiosamente, menciona 300 denários. Estaria estipulando um valor futuro? Estaria taxando o que não tem preço. Mas Judas é péssimo comerciante: falou de 300 denários, e contentou-se com apenas 30 (Mt 26,15). Vendeu Jesus pelo preço de um mês de trabalho. Para Judas, Jesus valia 1 salário mínimo. As águas da torrente jamais poderão apagar o amor, nem os rios afogá-lo. Quisesse alguém dar tudo o que tem para comprar o amor… Seria tratado com desprezo (Ct 8,7).

Deixe-a. Ela guardou esse perfume para me ungir no dia do meu sepultamento (Jo 12,7). Deixai-a. A ordem é clara. Que ela guarde o perfume para mais tarde. Mas apesar da recomendação, o perfume não será conservado.

Um dia, mais tarde, os discípulos, representados em Arimateia (19,38-39), irão se esquecer dessa libra do perfume de Maria, e aceitarão as 100 libras do aroma que lhes irá levar o fariseu Nicodemos, aquele que só ia procurar Jesus à noite, por medo. Se fizerem isso, os discípulos estarão tentando perpetuar a memória de Jesus como um defunto ilustre. Mas não terão aprendido que o doador da vida é a própria vida em si mesma. Maria levou 1 libra de perfume. Nicodemos precisará de 100 libras. Maria unge a vida. Nicodemos se aproxima para ungir a morte (Jo 19,39). Essa é a grande abissal diferença!

Eis que faço novas todas as coisas (Ap 21,5).

Irmãos e irmãs, é Páscoa do Senhor, a nossa páscoa. Que o Senhor mais uma vez ressuscite em seus corações. Que exulte o céu e os anjos triunfantes! Que a luz do Cristo que ressuscita resplandecente dissipe as trevas de nosso coração e de nossa mente.

Amém.

+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói

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