O que nós acabamos de cantar, com o Salmo 18, é a certeza de que Deus sempre nos dá uma palavra que orienta a nossa vida. Uma palavra que, como diz o salmista, é de fato luz para os nossos passos.
Nós não precisamos andar nas trevas, não precisamos andar perdidos, porque nós temos e sempre teremos uma bússola, sempre teremos uma palavra que nos norteia, que nos guie, nos oriente. Palavra essa, que nos é oferecida todos os dias, todas as semanas, todos os meses, que podemos ou não acolher. Essa palavra, que a Igreja no Brasil, há 50 anos, no mês de setembro, nos convida a reconhecer como um dom de Deus, um presente que Deus nos dá, para que nós, de fato, sejamos homens e mulheres da palavra. Não de uma palavra qualquer, não de uma palavra que hoje entra por um ouvido e sai pelo outro, mas ao contrário, de uma palavra que pode mudar, que pode transformar, e que pode fecundar a nossa vida, e essa é a palavra que nós escutamos a cada semana, que nos convida a um processo de conversão.
Ao longo dessas semanas, Jesus tem feito conosco uma verdadeira catequese, nos orientando sobre o que significa segui-lO, o que significa estar com Ele, fazer parte do Seu grupo.
O evangelho de hoje (Mc 9,38-43.45.47-48) narra para nós uma cena muito curiosa que, por um lado até nos consola, porque estamos diante de uma cena, que manifesta para nós, aparentemente, uma reação ciumenta, ou talvez até invejosa, do discípulo amado, de São João. São João está aqui, em nome dos discípulos, em nome dos apóstolos, incomodado, porque encontraram um homem que expulsava demônios, em nome de Jesus. Mas aquele homem não fazia parte do grupo. Não fazia parte, aparentemente, do grupo dos discípulos, do grupo dos apóstolos, e como ele pode estar fazendo isso em nome de Jesus?
A mesma cena, de uma maneira diferente, foi narrada na primeira leitura (Nm 11,25-29), pelo Livro dos Números, quando dois homens começam a profetizar, a falar em nome de Deus, sob a ação do Espírito Santo, e estes dois homens não estavam na tenda, na tenda onde estavam todos reunidos, para receber o Espírito que habitava em Moisés, e por isso Josué, então também como São João, questiona agora Moisés: por que aqueles dois homens estavam profetizando e não faziam parte do grupo? E Moisés então dá uma resposta que nós deveríamos guardar para nossa vida: quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta! E que o Senhor lhe concedesse o seu Espírito. Na verdade, meus irmãos, todos nós somos profetas, todos nós recebemos o Espírito de Deus, todos nós não só podemos, mas todos nós devemos, falar em nome de Deus, falar a palavra de Deus, proclamar essa palavra! Que é dada a todos nós. Mas é preciso que nós também nos lembremos de que o Espírito de Deus não está apenas aqui, o Espírito de Deus não fala apenas aqui, o Espírito de Deus não age apenas aqui entre nós.
É preciso que tenhamos um olhar, uma atitude mais inclusivistas do que nós, normalmente, temos, porque nós excluímos, nós somos muito mais exclusivistas, seletistas, e achamos muitas vezes que Deus só vai agir aqui dentro, que Deus só vai agir entre nós. Nós esquecemos de que Deus está agindo também lá fora. Deus que falou até pela mula de Balaão pode falar, e fala, através de mim, através de você. E através de quem Ele quiser. Jesus nos lembra que o Espírito sopra onde quer (Jo 3,8), como quer e quando quer. Nós precisamos aprender a respeitar a liberdade de Deus, a liberdade do Espírito e a reconhecer que de fato esse Espírito está agindo. E a ter a capacidade, a humildade de acolher as ações extraordinárias do Espírito de Deus também, fora dos nossos ambientes, fora dos nossos ambientes privilegiados da ação do Espírito. Mas não ambientes, onde o Espírito age de forma única, ao contrário o Espírito continua agindo aqui e lá fora.
E ao mesmo tempo, o Senhor hoje nos deu também uma palavra, que nos convida a uma atitude muito mais coerente na vivência da nossa fé, e por isso Ele traz para nós o tema dos escândalos. De certa maneira, parece que já nos acostumamos com os escândalos, são escândalos nas nossas famílias, são escândalos na sociedade, na política, na Igreja. Parece que sobram os escândalos e parece que nós vamos nos acostumando, nos acostumando a ver escândalos e às vezes nos acostumando também a dar motivos de escândalo.
Mas o Senhor foi tão duro no evangelho, que nos fazia pensar que era melhor a morte do que escandalizar alguém. Pois na Escritura, quando nós ouvimos essa palavra escândalo, ela nos aponta para duas atitudes, para duas direções: o escândalo pode ser como uma pedra de tropeço, pode ser uma atitude errada que eu tenho, e que na verdade eu faço com que o outro tropece, com que o outro caia, com que o outro também vá para o mesmo pecado ou pecado semelhante ao meu.
Também o escândalo é sinal do obstáculo, quando a minha atitude é um obstáculo e impede o outro de fazer o seu caminho de conversão. Quantas vezes as pessoas dizem: não, não vou para a igreja, tem tanta gente na igreja fazendo coisa errada… é um escândalo que vai obstaculizando a entrada de outros para a comunidade de fé, eu impeço o outro de fazer a sua caminhada de conversão, com minha vida com meu testemunho errado. Na verdade, com o meu contratestemunho, na vivência da fé. Quantas vezes as pessoas comentam, mas fulano vai à igreja, e faz isso, isso, isso!
É claro que todos nós erramos, pecamos, mas é preciso que nós lutemos para viver uma vida coerente com a nossa fé. Por isso, é que no final do evangelho, Jesus, de modo radical, nos fazia lembrar que aquilo que é pra nós, meio para o pecado, instrumento para o pecado, nós devemos cortar, nós devemos arrancar. E de uma maneira, podemos dizer, até exagerada, o Senhor nos disse: se o teu pé te leva a pecar, corta, se tua mão te leva a pecar, corta, se teu olho te leva a pecar, arranca-o, poderemos continuar: se teu ouvido te leva a pecar, corta, se tua língua te leva a pecar, corta.
É uma atitude radical de rompimento, de decisão de vontade firme para cortar da nossa vida o caminho para o pecado. E todos nós sabemos o que precisamos cortar hoje, o que precisamos romper hoje, para que a lógica do pecado não se instaure na nossa vida de tal maneira que nós vamos até nos habituando. É até curioso, que às vezes, vamos nos confessar, e as pessoas costumam dizer, mas é um pecado de todo dia, Padre, falar mal dos outros, fazer isso, fazer aquilo, e vamos minimizando o pecado, vamos nos acostumando, a falar mal, a pecar na maledicência, a pecar às vezes na calúnia. E de certa maneira, vamos achando que o pecado faz parte da nossa vida e causamos escândalos dentro e fora da igreja. É preciso que hoje, eu e você, fortalecidos pelo Espírito, tomemos uma decisão e tenhamos o foco necessário para lutar contra o pecado, que muitas vezes, já está instaurado na nossa vida.
E por fim, a liturgia de hoje nos apresenta, nos oferece, um texto, tão atual, que poderíamos dizer que foi escrito ontem! O trecho que acabamos de ouvir, da carta de São Tiago (Tg 5,1-6), dirigido aos poderosos, aos ricos, talvez poderia ser um texto rejeitado por nós, porque poderíamos pensar: eu não sou rico, não sou poderoso, não tenho tanto dinheiro na conta, não tenho um carro do ano, eu não tenho casa na praia, não tenho isso não tenho aquilo. Essa palavra não é para mim.
Mas na verdade, essa palavra é para todos nós, porque todos nós, de certa maneira, também acumulamos, também somos ricos de alguma coisa. A Igreja, no final da década de 1970, dizia: ninguém é tão pobre que não tenha o que dar e ninguém é tão rico que não tenha o que receber.
O que nós estamos acumulando? Nós estamos nos apegando a quê? Será que nós aprendemos a partilhar, a partilhar com os outros tantas coisas que temos? quantas vezes, meus irmãos, nós vamos acumulando, acumulando, acumulamos roupas, calçados… Quantas vezes nós encontramos pessoas até que acumulam potes de cozinha. E ainda dizem, olhe o meu pote, depois você devolve. E vamos acumulando nossas riquezas.
Podendo partilhar, podendo oferecer aos outros, podendo fazer com que o outro tenha o que na verdade eu tenho de sobra! Que essa palavra hoje nos ajude a fazer a experiência do desapego, a fazer a experiência da partilha, como dizia São João Paulo II, quando nos lembrava que o que falta na mesa dos pobres é o que está sobrando na mesa dos ricos.
Que essa palavra de São Tiago nos ajude a um caminho de verdadeira conversão e não nos permita seguir o Senhor de modo incoerente, contraditório com Sua palavra, com a Sua vontade para nossa vida, e que possamos, de fato, fazer a experiência de acolher essa palavra, que é verdade, que orienta e que dá vigor a nossa vida, porque sem dúvida alguma a lei do Senhor Deus é perfeita e alegria ao coração!