Amados Irmãs e irmãos,
Por toda parte, as quaresmeiras estão floridas. Elas nos anunciam que estamos para reviver os momentos principais e literalmente cruciais da nossa fé. As quaresmeiras nos alertam para o ponto ômega e a certeza fundadora: Jesus não irá fugir nem nos abandonar. Ele ficará conosco. “Abbá, Pai, tudo te é possível: afasta de mim este cálice, mas não seja o que eu quero, mas o que Tu queres” (Mc 14,36). Tudo se define por essa frase. Essa é a grande oração do grande momento. Ele poderia ter fugido? Poderia. Nós também podemos. Mas se fugirmos serão essas fugas que escreverão nossa história. Nossa biografia será escrita a partir do quanto fugimos e do quanto enfrentamos. É assim que seremos lembrados. É por isso que Jesus é lembrado.
Em todos os evangelhos existe uma exceção que não passa despercebida: a quantidade de detalhes com que foram descritas as narrativas da Paixão. Basta reparar na quantidade de nomes que figuram no relato de Marcos: desde um certo homem carregando um cântaro de água, vindo ao encontro dos discípulos (Mc 14,13), até a Madalena e uma Maria de Joset, que observaram silenciosas onde Jesus havia sido colocado (Mc 15, 47).
Por detrás desses relatos deve haver uma velha tradição, cuidadosamente transmitida, e por detrás dessa tradição devem estar lembranças de testemunhas oculares. Enfim, o que esses relatos nos contam, são acontecimentos encadeados com muitos detalhes extraordinariamente concretos, coisa que não acontece no restante dos evangelhos.
Mas dessas tradições recheadas de lembranças o que nenhuma delas deixou de mencionar foi isso: Jesus não fugiu; Jesus ficou.
Abba, Pai, tudo Te é possível…
É impossível não relembrar quando o Anjo garantiu a Maria, nos preâmbulos da salvação, que “Para Deus nada era impossível” (Lc 1,37). Não seria essa a exata hora de Jesus lembrar ao anjo que o reconfortou (Lc 22,43) o que talvez aquele mesmo anjo tivesse garantido, no momento em que a criança fora gerada?
Ele poderia? Fez? Não.
Nenhuma lembrança que sustentou as tradições mencionou uma saída desonrosa. Afinal, “Quem pega no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus” (Lc 9, 62). Quando chegou a sua hora, Ele não olhou.
A Ceia da Páscoa findava com o canto do pequeno Hallel, Salmo 115-118. Dali, depois de terem cantado o hino (Mc 14,26), Jesus e seus discípulos foram para o Monte das Oliveiras. Ao sopé do monte, num lugar chamado Getsêmani, Jesus passou a sentir medo e angústia (Mc 14,33).
Abbá, Pai, tudo Te é possível…
Confiança absoluta! Não há no judaísmo da época nenhuma testemunha de Deus ter sido invocado por Abbá, interpelação confiante e amorosa que as crianças faziam a seus pais. Por um lado, Jesus está pedindo com a confiança de um filho pequeno. Por outro lado, Ele está lutando com Deus. A menção do cálice, em linguagem bíblica, é a do cálice da desgraça de que falam o Salmo 11,6; Isaias 51,17.22 e Ezequiel 23,32. Esse é o cálice da morte.
Nada deve ser retirado dessa cena, nada deve ser suavizado. Jesus entrou em profunda angústia; Ele se colocou nas mãos do seu Abbá, mas em nada a angústia lhe foi mitigada. Ler o cardápio não mata a fome. Às vezes, mantemos a impressão enganosa de que, pelo fato de confiarmos, e basta isso, todos os nossos problemas serão resolvidos ou minimizados, como se a vida fosse uma tela de computador. Não serão. A vida continuará seu curso como um rio caudaloso em dia de enchente, e caberá à fé atravessar esse rio sem bote salva-vidas.
Jesus não teve nenhum bote salva-vidas, nada que Lhe atenuasse o momento. Nem os discípulos: eles dormiram. Talvez ainda continuem dormindo. Esse sono pesado é a metáfora perfeita da inconsciência da vida, do sono que não desperta, do cego de nascença, que poderia ter preferido ficar cego a ir lavar-se na fonte de Siloé. Afinal, a inércia sempre vence. Os discípulos dormiram, quem sabe, ainda durmam.
Também não deve passar despercebida a grande quantidade de linguajar dos salmos e da teologia do “justo sofredor”, que foi insuflada nesses relatos. Mas que isso não autorize a pensar que a Igreja Primitiva lançou mão da liberdade poética para reconstruir livremente, praticamente inventando, os acontecimentos da Paixão à luz do Antigo Testamento. A história da Paixão narra eventos reais. Quem teria a imprudência de reter o desastre da Paixão, se ele não tivesse realmente acontecido? O que acontece aqui e que continuamos celebrando, a despeito de celebrar o grande fracasso, é a história de Deus com o resto do seu povo, Servo Sofredor, do qual nem Deus se envergonhou nem o povo se envergonhou de seu Deus.
A cena do Getsêmani se distingue, radicalmente, de tudo o que foi descrito depois. Em nenhuma das narrativas de martírios, próprias do cristianismo primitivo, aparecem temas de combate e lutas pela oração, nenhuma tentativa de desmontar a vontade divina, ainda que salientando que,ao final, ela prevalecesse. Celso, filósofo e crítico do cristianismo, zombou da angústia mortal de Jesus. O imperador Juliano Apóstata julgou o comportamento de Jesus “deplorável”. Aos olhos da Antiguidade, os heróis deveriam se comportar de maneira bem diversa dessa. Mas para os quatro evangelistas, ao contrário, o relato dessa insistência existencial não só é possível, mas necessário: foi assim que sofreram os justos em Israel, foi assim que Jesus sofreu.
Assim foi o processo pascal; assim será.
“Tu me seduziste, Javé, e eu me deixei seduzir. Foste mais forte e me venceste. Por isso sirvo de zombaria o dia todo, e todo mundo caçoa de mim” (Jr 20, 7).
“Trazemos esse tesouro em vasos de barro … Somos atribulados, mas não esmagados. Trazemos sempre em nosso corpo a agonia de Jesus…” (2Cor 4,7).
Parece que bastam essas duas citações para demonstrar que a confiança não desmonta a finitude humana nem o sofrimento que nos é imposto por essa mesma condição. A confiança lança pontes, mas não exclui o perigo das águas. Jesus atravessou. Nós atravessaremos.
“Eu vos asseguro: Já não beberei do fruto da videira até o dia em que beberei vinho novo no Reino de Deus” (Mc 14,25). O pano de fundo dessa fala interpretativa é a visão da grande ceia do final dos tempos de Isaias 25. “Neste monte, Javé arrancará o véu que cobre os povos, Ele destruirá para sempre a morte; enxugará as lágrimas de todas as faces, e eliminará da Terra inteira a vergonha do seu povo” (Is 25, 7).
Esperamos profundamente esse dia.
Antes disso, e por enquanto, precisamos sair de nossa insensibilidade. “Simão, você está dormindo? Vocês ainda estão dormindo? (Mc 14, 37.41). Os discípulos dormiram, quem sabe, ainda durmam. “Basta. A hora chegou. Levantem-se! Vamos! Aquele que Me irá entregar está perto” (Mc 14, 41-42).
Na verdade, aquele dia já chegou. No dia em que Jesus não fugiu, por nós, a Ceia do grande dia começou.
Por toda parte, as quaresmeiras estão floridas de roxo, rosa e branco. Nem o branco da Páscoa elas se permitiram esquecer. Afinal é para o branco da Páscoa que caminhamos, de passos largos e coração dilatado.
Levantam-se! Vamos! Vivamos intensamente a Quaresma e o Tríduo Pascal! Nos encontraremos lá, irmãos. Subiremos a Jerusalém e nos encontraremos no altar da Páscoa, onde toda lágrima será enxuta, de onde o fracasso da Cruz jamais será computado como vergonha. Deus nunca nos abandonou. Nunca se envergonhou de nós nem nunca nos envergonhou. Até a Páscoa, amados irmãos e irmãs!